sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

A metamorfose do Recurso Hierárquico Necessário

Devido à íntima relação que as normas constitucionais têm com as disposições normativas do Direito Administrativo, e consequentemente do próprio contencioso da administração, começamos por descrever o pano de fundo onde a metamorfose da figura do recurso hierárquico foi acontecendo partindo, por isso, de dois momentos chaves da história constitucional e terminando a nossa análise com uma visão da posição que atualmente o recurso hierárquico ocupa, em resultado da revisão de 2002, no Contencioso Administrativo.

Desta maneira, no plano constitucional, e seguindo a sistematização do Professor Paulo Otero[i], identificamos dois períodos de assinalável importância no que respeita às impugnações administrativas (e consequentemente ao recurso hierárquico), a saber: o primeiro momento corresponde ao texto inicial da Constituição de 1976, onde, segundo a letra da lei, era conferido aos administrados o direito de recurso contencioso contra atos administrativos definitivos e executórios; sendo o segundo momento, a revisão constitucional de 1989, onde se opera uma alteração à letra do artigo 268.º, omitindo-se a referência à necessidade de o recurso contencioso ser interposto contra atos definitivos e executórios, passando a ser utilizado como critério de impugnabilidade o efeito lesivo do ato.

Assim, o primeiro momento corresponde ao texto inicial da Constituição onde se fazia depender a recorribilidade dos atos administrativos da circunstância de estes serem definitivos e executórios. Esta definição de ato definitivo e executório ganhou relevo, tendo sido “concretizada” para lá do plano constitucional, sendo, aliás, considerada “o conceito de maior importância do Direito Administrativo”, sobretudo porque é nele que assenta a garantia do recurso contencioso – ou seja, o direito que os particulares têm de recorrer para os tribunais administrativos contra os atos ilegais da Administração Publica” (Freitas do Amaral). Este conceito foi tão relevante que não era somente interpretado como um pressuposto processual, mas também como o conceito substantivo de ato administrativo (restritivo). Nessa medida, o ato – para o ser - teria, desde logo, de concretizar a “última palavra da administração”, ou seja, de forma mais específica, o ato teria de reunir as três dimensões de definitividade, bem como possuir caracter executório. Com efeito, ele teria de se situar temporalmente na conclusão de todo um processo que se vai desenrolando no tempo, consubstanciando definitividade horizontal, teria de ser praticado pelo órgão que ocupa a posição suprema na hierarquia, caso contrário não se consideraria o ato como verticalmente definitivo e por último ele teria de ser definitivo em sentido material, o que significa que o seu conteúdo teria de concretizar a definição de situações jurídicas da própria Administração ou a definição jurídica da situação dum particular que está ou pretende estar em relação com a Administração. Tendo, por fim, de ser um ato administrativo que criava a obrigação por si próprio e cuja execução coerciva imediata a lei permitisse, independentemente de sentença judicial (carácter executório). Como facilmente se compreende, face a este contexto legislativo e doutrinário, o recurso hierárquico necessário “nasce” no nosso ordenamento jurídico, de forma natural, pela mão da Lei do Processo dos Tribunais Administrativos, que o introduz como verdadeiro pressuposto do recurso contencioso. Como resulta de forma expressa do art.34.º da LPTA, que estabelecia o regime jurídico da “precedência de impugnação administrativa”, assim como de forma implícita, segundo o art.25.º,nº1, da LPTA, que determinava só ser “admissível recurso dos atos definitivos e executórios”, remetendo implicitamente para a construção teórica da “definitividade vertical”, ao fazer depender a admissibilidade de recurso de atos administrativos da previa interposição de recurso hierárquico necessário, pois só desta maneira o ato seria considerado verticalmente definitivo.
No entanto, a revisão constitucional de 1989 veio alterar este clima aparentemente harmonioso, como resulta, desde logo, da leitura, dos novos, n.º 4 e 5 do art.268.º da CRP onde, segundo o n.º4 “é garantido aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer atos administrativos, independentemente da sua forma, que lesem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos”, estabelecendo-se, no nº5 do mesmo artigo, que “é igualmente sempre garantido aos administrados o acesso à justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos”. Ora, desta nova letra da lei – que preconiza o desaparecimento da expressão “definitivos e executórios” – resultaram duas interpretações radicalmente antagónicas por parte da doutrina. Uma parte da doutrina, continua a reconhecer ao legislador ordinário a liberdade de exigir a definitividade vertical ao ato administrativo passível de recurso contencioso, circunstância que permite continuar a falar-se em recursos graciosos necessários e recursos graciosos facultativos. Uma outra parte, minoritária, da doutrina, pelo contrário, entende que a alteração ao texto constitucional, substituindo o requisito da definitividade vertical pela lesividade do ato, veio tornar inconstitucional a figura do recurso hierárquico necessário.

Assim, do lado dos que defendem o recurso hierárquico necessário e consequentemente a sua conformidade com a Constituição encontramos, desde logo, um grande número de decisões Jurisprudências[ii] (quer do TC, quer do STA), bem como a grande maioria da doutrina. Para os autores que negam a inconstitucionalidade do recurso hierárquico necessário, enquanto pressuposto da impugnação dos atos administrativos praticados por órgãos subalternos no uso de competência concorrente com o órgão superior, como é o caso do Professor Vieira de Andrade[iii], esta posição funda-se, essencialmente, nos seguintes argumentos:
·         O art.268.º, n.º4 da CRP confere aos cidadãos o direito ao recurso contencioso contra qualquer ato de autoridade lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, não se encontrando, de forma alguma, negado tal direito pela necessidade de interposição prévia de recurso administrativo. Só nos casos em que a obrigatoriedade de impugnação administrativa possa prejudicar o direito de recurso do particular – designadamente, quando o recurso hierárquico não suspenda a eficácia do ato – poderia suscitar-se a questão da inconstitucionalidade;
·         Apesar de a letra da lei Constitucional já não consagrar de forma implícita a exigência de definitividade vertical, ao não circunscrever a garantia de recurso em função do caracter “definitivo e executório” dos atos, cumpre, sempre, à lei ordinária regular o processo administrativo. E nesse sentido, o legislador ordinário, no âmbito das suas competências, pode estabelecer esse requisito, podendo, igualmente, fixar outros pressupostos processuais, sem que tal preconize uma restrição dos direitos fundamentais dos particulares. A lei só seria inconstitucional se tal restrição fosse arbitrária ou desproporcionada em face dos valores invocáveis para justificar o recurso. No entanto, “a necessidade de interposição de recurso hierárquico fundamenta-se em valores comunitários – a unidade da ação administrativa (valor com assento constitucional expresso – art. 267.º,n.2, e 202.º, alínea d), da CRP) e a economia processual no contencioso administrativo” (Vieira de Andrade);
·         Por fim, o recurso hierárquico necessário não representa uma desvantagem para o particular, na verdade, ele constituiu uma alternativa válida ao recurso contencioso imediato, garantindo vários benefícios do ponto de vista da defesa dos direitos e interesses dos administrados, como por exemplo: a suspensão da eficácia do ato recorrido, a dispensa de patrocínio por advogado ou a obrigação de um órgão administrativo mais qualificado ter de decidir o que permite, também, o controlo do mérito.


Por outro lado, a doutrina minoritária que defende que a substituição do requisito da definitividade vertical pela lesividade do ato veio tornar inconstitucional a figura do recurso hierárquico, parte, desde logo, do entendimento de que “a nova formulação do direito fundamental do recurso contencioso no texto constitucional implicou o alargamento da recorribilidade dos atos administrativos que, agora, não pode mais ser determinada em razão de características substantivas, como as da definitividade e da executoriedade,[…]passou, antes, a depender unicamente da verificação do pressuposto processual da lesão de direitos dos particulares”[iv]. E nesse sentido, de acordo com as opções constitucionais, passam a ser recorríveis, desde que - e sempre que - sejam lesivos de direitos dos particulares tanto os atos praticados pelo superior hierárquico como os dos subalternos. Deste entendimento resulta, desde logo, que o acesso à justiça administrativa, constitui um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, não podendo, por isso, ser restringido pelo legislador ordinário, na medida que tal restrição não encontra sustento no preceito do art.18.º, n.º 2 da CRP. Com efeito, serão manifestamente inconstitucionais as normas da legislação ordinária do contencioso administrativo que restrinjam o recurso aos atos definitivos e executórios (art.25.º da LPTA), ou que afastem a recorribilidade de atos administrativos lesivos que não tenham sido previamente impugnados pela via administrativa (art.34.º, LPTA), sendo, igualmente, inconstitucionais as normas que estabeleçam a exigência de recurso hierárquico necessário, uma vez que para os seguidores desta orientação doutrinária elas serão violadoras:
·         Do princípio constitucional da separação entre a Administração e a Justiça – art.114.º, 205.º e ss., 266.º e ss. CRP – por fazerem precludir o direito de acesso ao tribunal em caso de não utilização de um meio administrativo, que não poderá ser outra coisa se não facultativo;
·         Do principio da desconcentração administrativa – art.267.º,nº2, CRP – que implica a imediata recorribilidade dos atos dos subalternos sempre que lesivos, sem prejuízo da lógica do modelo hierárquico de organização administrativa, uma vez que o superior continua a dispor de competência revogatória;
·         Do princípio da efetividade da tutela – art.268.º, nº4 e 5 CRP – em razão da preclusão da possibilidade de recurso contencioso, no caso de não interposição prévia de recurso contencioso, no prazo de um mês, o qual, por ser manifestamente curto, poderia equivaler, na prática, à inutilização prática da possibilidade de exercício do direito.

Pelo que fica dito, após a revisão constitucional de 1989, passam a existir duas correntes doutrinárias diametralmente opostas entre si. No entanto, devido ao facto de a última corrente apresentada ter sido sempre minoritária, observou-se da parte do legislador ordinário e da jurisprudência uma insensibilidade em relação às alterações constitucionais em matéria de requisitos do ato administrativo contenciosamente impugnável, tendo-se tudo passado como se a revisão constitucional de 1989 não tivesse retirado a expressão “definitivos e executórios” aos atos passiveis de recurso contencioso. Desta circunstância resultou a criação de preceitos ordinários que foram consagrando a figura do recurso hierárquico necessário e que com a revisão de 2002 perderam a sua “coerência sistemática” o que levou a doutrina a ter de ensaiar justificações e propósitos para a sua existência, o que em alguns casos revela simplesmente “novas justificações para velhos recalcamentos”[v]. O que, infelizmente, confere uma dimensão quase premonitória à questão retórica que o Professor Paulo Otero lança no seu artigo “Impugnações administrativas”[vi].

 Assim, analisamos, por fim, o impacto que a reforma do Contencioso Administrativo de 2002 teve em toda esta problemática.

 A reforma de 2002, através das soluções consagradas nos artigos 51.º[vii] e 59.º, nº 4[viii] e 5 CPTA, levantou a necessidade de discutir a questão de se saber se os referidos preceitos do CPTA vêm, ou não, eliminar a figura do recurso hierárquico. À luz deste novo regime, a doutrina aceita pacificamente que o recurso hierárquico, enquanto regra geral, foi claramente afastado pelo Código. Desde logo, não é feita nenhuma consagração da figura, instituindo-se, inclusive, um regime que permite o imediato acesso à apreciação contenciosa. Tal solução torna-se evidente ao observamos, em primeiro lugar, que o CPTA, por força da regra do art.51.º, elimina de forma clara a necessidade de prévio recurso hierárquico para aceder ao recurso contencioso, sendo agora impugnáveis todos os atos administrativos com eficácia externa. Resultando desta “inovação” que os atos práticados pelos subalternos, quando preencham os pressupostos, serão subsumíveis na previsão do art.51.º, tendo sid afastada de forma liminar a exigência de definitividade vertical. Torna-se igualmente clara a orientação que o legislador pretendeu consagrar, quando observamos o art.59.º, e constatamos que foi operada uma uniformização dos efeitos dos recursos hierárquico e facultativo, atribuindo-se efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa (nº4) - o que revoga o preceito do art.164.º CPA -, mesmo nos casos em que o particular usou previamente uma garantia administrativa, tal não obstando à possibilidade de imediata impugnação contenciosa. Desta feita, os recursos hierárquicos passam a não ser necessários, transformando-se a impugnação facultativa em “impugnação recomendável” (Paulo Otero).
Com efeito, é assim pacificamente aceite pela doutrina que o recurso hierárquico necessário foi afastado pelo CPTA, instituindo-se um regime jurídico que permite o imediato acesso à apreciação contenciosa. O CPTA consagra a regra geral da desnecessidade de utilização das vias de impugnação administrativa para aceder à via contenciosa, revogando-se a regra do recurso hierárquico enquanto recurso necessário, passando a regra a ser a do recurso hierárquico facultativo. No entanto, face às disposições normativas que o sistema ainda consagra de forma avulsa, não obstante do que se acabou de dizer, a doutrina volta a dividir-se em relação às interpretações e papéis possíveis de tais preceitos no nosso ordenamento. Assim, surge uma corrente que defende uma interpretação restritiva de onde resulta que o CPTA vem revogar a regra geral do recurso hierárquico necessário, mas tal circunstancia não implica a revogação de eventuais regras especiais. Contrapondo-se uma corrente, que partindo de uma interpretação mais lata, defende que o CPTA vem harmonizar as disposições ordinárias com as constitucionais, afastando definitivamente a necessidade do recurso hierárquico do ordenamento jurídico português.
Para os autores que defendem a permanência do instituto do recurso hierárquico necessário em leis especiais[ix], apesar de ser claro que o regime que resulta do CPTA afasta a regra geral do recurso hierárquico necessário, consideram, no entanto, que tal regime não tem alcance para afastar as múltiplas disposições legais avulsas que instituem a necessidade desta figura em situações concretas - como é o caso, a título meramente exemplificativo, do art.75.º, n.º8 do D.L. nº24/84, de 16 de Janeiro. Segundo esta corrente doutrinária, quando nada seja dito, deve entender-se que o ato pode ser imediatamente impugnável perante os tribunais administrativos, mas, se existir algum regime expresso na lei que preveja o recurso hierárquico necessário, então, este deve ser observado (considerando-se, assim, em vigor as normas avulsas que impõem tal regime), defendendo, que tal exigência em nada ofende o preceito constitucional do ar.268.º, n.º4, na medida em que o acesso à impugnação contenciosas continua garantido, onerando-se “apenas” tal acesso à prévia utilização das garantias administrativas.
Contrariamente a esta posição, encontra-se a posição defendida, entre outros, pelo Professor Vasco Pereira da Silva[x], que entende que o CPTA veio afastar de forma inequívoca o recurso hierárquico necessário ao operar uma harmonização entre o regime constitucional e a legislação ordinária. Deste modo, a figura do recurso hierárquico necessário deixa de existir por completo no ordenamento jurídico português, tanto como regra geral, como através de legislação avulsa. No entanto, para os adeptos desta doutrina, este desaparecimento ocorre não por força de uma revogação do instituto pelo regime instituído pelo CPTA, mas antes, pelo facto de estas normas caducarem por esvaziamento do seu objeto. Sustentando esta posição, os seus defensores, partem, desde logo, do facto de a justificação da existência do recurso hierárquico necessário ser a de que ele consubstanciava um pressuposto de impugnação do ato administrativo e que, face ao atual regime, tal impugnação já não se encontra na dependência do preenchimento desse pressuposto. Ou seja, a impugnação administrativa prévia deixou de ser necessária, logo, não há motivo para que continue a ser exigida em leis especiais como um pressuposto processual de preenchimento necessário. Assim, e com base nesta construção, as regras especiais consagradas de forma avulsa no nosso ordenamento caducam por falta de objeto, a que acresce a inconstitucionalidade da exigência do recurso hierárquico necessário por violação do conteúdo essencial do direito à tutela plena e efetiva, assim como dos princípios da divisão de poderes e da descentralização. Não sendo, pelo que se acabou de dizer, aceitável, para os defensores desta tese, os argumentos de que o CPTA revogou a regra geral do recurso hierárquico necessário mas não revogou as regras especiais. Porque se assim tivesse sido, levantava-se uma misteriosa questão: que era a de saber se as regras que hoje são apelidadas de especiais, antes do regime do CPTA, reiteravam a regra geral, sendo a sua concretização, então porque é que o legislador do CPTA teria só revogado a regra geral e não, também, as normas que se limitavam a reiterar essa mesma regra? Segundo o Professor Vasco Pereira da Silva, este argumento, bem como uma eventual resposta que se possa ensaiar para esta misteriosa pergunta, não podem ser outra coisa do que simplesmente absurdos, por serem manifestações inconscientes dos velhos “traumas de infância” do contencioso administrativo, que procuram encontrar “novas justificações para velhos recalcamentos”.

Assim, feita a exposição do panorama geral, termino, dizendo que considero que o regime que resulta do CPTA é o mais acertada, ao consagrar a regra do recurso hierárquico facultativo. Através do preceito do art.59.º,nº4 CPTA – que revoga o art.164.º CPA – acrescenta-se ainda mais utilidade ao recurso hierárquico facultativo, ao alargar o regime da suspensão do prazo do recurso contencioso (que anteriormente era exclusiva do recurso necessário), tornando o recurso facultativo num recurso – nas palavras do Professor Paulo Otero – recomendável. Assim, considero que o legislador pretende manter a figura do recurso hierárquico, mas apenas enquanto mecanismo facultativo, por reconhecer que esta figura apresenta inúmeras vantagens, tais como:  suspender a eficácia do ato recorrido; ser fácil de interpor; ser barato e célere; e acima de tudo permitir um controlo de mérito, controlo esse que não é permitido ao Juiz Administrativo, estando-lhe apenas reservado o controlo da legalidade. Neste sentido, considero que não se devem acolher quaisquer construções teóricas que procurem concretizar a manutenção do recurso hierárquico enquanto pressuposto processual necessário para o particular poder aceder à Justiça Administrativa, uma vez que as garantias administrativas graciosas devem ser entendidas, em minha opinião, como facultativas, concretizando uma prerrogativa do particular, que no âmbito da sua autonomia escolhe ou não utilizá-las,  sem que a sua escolha o possa limitar no seu direito de acesso à justiça. Uma vez que tal limite seria contrário quer as normas Constitucionais (artigos 20.º, nº1 e 268.º nº4 e 5 CRP), quer aos critérios processuais de acesso à justiça que o Contencioso Administrativo consagra – art.51.º CPTA.

 Fim.


Jorge Tiago Marques Pinheiro
Nº17383



Bibliografia:

Almeida, Mário Aroso – “As implicações de Direito Substantivo da Reforma do                       Contencioso Administrativo”, in “Cadernos de Justiça Administrativa”,n.º34, p.69 e ss.

Andrade, Vieira – “Em defesa do recurso hierárquico”, in “Cadernos de Justiça Administrativa”, n.º 0, p.13 e ss.

Otero, Paulo – “Impugnações Administrativas”, in “Cadernos de Justiça Administrativa”, n.º 28, p.50 e ss.

Silva, Vasco Pereira  – “Breve Cronica de uma reforma anunciada”, in “Cadernos de Justiça Administrativa”, n.º1, p.3 e ss.

Silva, Vasco Pereira – “De necessário a útil: a metamorfose do recurso hierarquico no novo contencioso administrativo”, in “Cadernos de Justiça Administrativa”, n.º 47, p.21 e ss.

Silva, Vasco Pereira – “Em Busca do Acto Administrativo Perdido”, p.629 a 691

Silva, Vasco Pereira -  “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanalise”, p. 347 a 364



[i] Paulo Otero, “Impugnações Administrativas”,cit, in “Cadernos de Justiça Administrativa”,nº28, cit., p.50 e 51
[ii] A título exemplificativo do entendimento predominante, à época, citamos parte da fundamentação do Acórdão do Tribunal Constitucional, nº499/96, P.383/93, de 20.3.1996: “Na perspetiva do legislador constitucional, a alteração ao nº4 do art. 268.º significou o propósito de desvincular a garantia de recurso do contencioso tradicional de ato definitivo e executório, pondo a sua tónica nos atos que são suscetíveis de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos. Esses atos serão, desde logo, suscetíveis de impugnação contenciosa, ao abrigo do disposto na citada norma constitucional. […] Não se pode concluir, porém, que seja hoje inconstitucional qualquer exigência de recurso hierárquico necessário. Quando a interposição deste recurso não obsta a que o particular interponha no futuro, utilmente, em caso de indeferimento, recurso contencioso, não terá sido violado o direito de acesso aos tribunais administrativos, tal como é conformado pelo art.268.º, n.º4, da CRP.”
[iii] Vieira de Andrade, “Em defesa do recurso hierárquico”, in “Cadernos de Justiça Administrativa”, n.0, p.19 e ss.
[iv] Vasco Pereira da Silva, “em Busca do Acto Administrativo Perdido”, cit,p.691
[v] Vasco Pereira da Silva, “De necessário a útil: a metamorfose do recurso hierárquico no novo contencioso administrativo”, in, “ Cadernos de justiça Administrativa” n.º47, cit,p.21
[vi] Paulo Otero, in “Cadernos de Justiça Administrativa” n.º28, cit, p.54 : “já existiu uma revisão constitucional que deixou de exigir a definitividade vertical nos atos contenciosamente recorríveis e nada se alterou na jurisprudência quanto ao entendimento tradicional sobre essa mesma exigência; o que nos garantirá agora que a alteração de lei ordinária terá, desta vez, mais sucesso do que a anterior revisão constitucional?”
[vii] O preceito deste artigo determina a impugnabilidade dos atos administrativos em razão da eficácia externa e da lesão dos direitos dos particulares, afastando assim expressamente toda e qualquer exigência de recurso hierárquico necessário.
[viii] De acordo com o art.59.º, nº4, “a utilização de meios de impugnação administrativa suspende o prazo de impugnação contenciosa do ato administrativo, que só retoma o seu curso com a notificação da decisão proferida sobre a impugnação administrativa ou com o decurso do respetivo prazo legal”
[ix][ix] Por todos, Mário Aroso de Almeida, “implicações de direito substantivo da reforma do contencioso administrativo”, in “Cadernos de Justiça Administrativa”,nº34, p. 71 e ss.
[x] Vasco Pereira da Silva, “O contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, p.354 a 361

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Evolução ou Regressão dos Poderes do Ministério Público no Contencioso Administrativo?

Foi em 1989, que nasceu especialmente, o principio da tutela jurisdicional e plena – a cada direito corresponde uma acção - , germinando o direito de acesso á justiça administrativa como um “direito fundamental” dos administrados a uma protecção jurisdicional efectiva.
É através desta necessidade de defesa dos administrados e da própria justiça administrativa, que o Ministério Público[1], adquire vasta importância, na defesa da legalidade e como representante do estado, ainda que com várias oscilações de poderes ao longo do tempo.
O MP vê os seus poderes consagrados constitucionalmente, mais propriamente no artg.219º, que no seu nº1 o exalta como representante legítimo do Estado e defensor da legalidade[2], estando estas competências densificadas nos artigos 1º a 7º do Estatuto do MP, tal como em artigos avulsos como 9º/2 e 85º do CPTA, entre outros.
A própria norma constitucional, refere que este é um órgão autónomo, todavia, tal como defende Prof. Vieira de Andrade nada se assemelha ao poder jurisdicional, uma vez que não tem competência para a práticas de actos materialmente jurisdicionais[3].
No sistema anterior á reforma, o MP detinha um poder bastante alargado, estando ao lado do juiz como seu auxiliar, tendo como principais funções, o exercício da acção pública, a função de amicus curiae[4] e ainda a representação do Estado (artg. 27º da LPTA).
Deste modo, tinha como exercício a defesa da legalidade, através de uma intervenção de natureza processual, que lhe permitia arguir nulidades, suscitar a regularização da petição inicial e requerer diligências instrutórias, tal como, emitir pareceres finais sobre a decisão a proferir.  
Com a reforma do contencioso administrativo, marcado desta por um pendor subjectivo, este passou a ser um processo de partes, alargando os poderes de decisão do juiz, contudo, mantiveram-se alguns resquícios objectivo, no que diz respeito á legitimidade processual activa, nos poderes que continuam a reconhecer-se ao MP como auxiliar da justiça, em defesa da legalidade.
Com esta reforma o MP veio perder algum do seu protagonismo, no seio do processo administrativo, ainda que tenha continuado com um papel de relevância na defesa da legalidade (artg.51º do ETAF), contribuindo assim para o equilíbrio dos poderes dos intervenientes processuais[5].
Importa referir assim, o artg. 85º do CPTA, que veio alterar significativamente o modo de intervenção do MP, em três momentos: quanto ao conteúdo, ao momento e ao modo de intervenção. Na sua anterior redacção, este previa poderes claramente mais genéricos ao MP, uma vez que nos processos em que este não era parte, poderia intervir em dois momentos, para a emissão de um visto inicial e de um visto final e ainda podia suscitar questões de índole processual que obstassem à apreciação do mérito da causa.
As razões para a supressão da vista final prenderam-se essencialmente com o acórdão Lobo Machado, proferido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, acolhida pelo Tribunal Constitucional, em que o parecer final do MP, era emitido numa fase em que as partes já não se podiam pronunciar, violando assim o Princípio do Contraditório. Importou também o acórdão nº 345/99, em que se veio pronunciar pela inconstitucionalidade do artg.15º da LPTA, em que permitia a intervenção do MP nas sessões de julgamento, com fundamento na violação do Princípio do Processo Equitativo a que se refere o artg. 20º/4 da CRP[6].
Contudo, o actual artg.85º veio conferir ao mesmo, a possibilidade de intervenção, mesmo não sendo parte e em que a forma da acção administrativa seja a especial, nos casos de defesa de direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de alguns dos valores referidos no artg.9º/2 CPTA (artg 85º/2 do CPTA). Neste artigo, o MP continua a ter o poder de requere diligências instrutórias e de emitir parecer sobre o sentido em que a causa deve ser decidida.
É no exercício da acção pública por parte do MP, na defesa da legalidade objectiva que este tem o seu papel mais significativo – artg.9º/2 do CPTA. O MP só poderá ir por esta via caso esteja em causa direitos fundamentais, questões de interesse público ou valores constitucionalmente reconhecidos, representando este instituto uma evidência do amplo poder de iniciativa que este continua a ter.
É também permitido ao MP, pelo artg. 73/3º do CPTA, este peça declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, sem necessitar da verificação da recusa de aplicação dos três casos concretos que se refere o nº1. Para além disso, pode nos processos impugnatórios invocar causas de invalidade diversas desde que não sejam arguidas pelos autores na petição inicial e pode invocar causas de nulidade ou inexistência nos processos (85/3º CPTA).
Em suma, é perceptível que foi ao nível da amicus curiae, que este viu os seus poderes mais limitados, perdendo quase toda a sua competência a nível de fiscalização da legalidade processual, mantendo-se somente a possibilidade de pedir diligências instrutórias. Foram-lhe também atribuídos poderes quanto aos conflitos em matéria de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas, quando anteriormente só lhe cabiam se o acto lesivo fosse tido como acto de gestão pública.
Todavia, cabe aqui referir uma crítica, apontada pelo Prof. Vieira de Andrade, que se prende com a diversidade de funções realizadas pelo MP, derivadas do facto deste poder desempenhar no mesmo processo funções incompatíveis, defendendo tanto o estado, como o administrado. Esta questão não parece a mais justa, uma vez que se os advogados de uma sociedade não podem representar mais que uma parte num processo, ainda que advogados diferentes, não me parece igualmente plausível que o MP o possa fazer. Defende assim o autor, que a representação pode ser assegurada por funcionários dos serviços jurídicos ministeriais ou por advogados contratados.
Importa igualmente para este estudo, qual as alterações no anteprojecto do código de procedimento administrativo[7] no que diz respeito aos poderes do MP.
Além das questões meramente gramáticas, a alteração que mais problemática do PRCPTA, a nível do MP, prende-se com a alteração ao artg.11º/2, em que as entidades públicas passam a poder fazer-se patrocinar em todos os processos por advogado ou licenciado em direito com funções de apoio jurídico.
A ordem dos Advogados, num dos pareceres requeridos pela Ministra da Justiça, vem referir que o facto do Estado poder ser representado por licenciado em direito em todos os processos, levanta problemas quanto á observância dos mesmos deveres deontológicos, designadamente de sigilo, a que o advogado da parte contrária está adstrito.
Relativamente ao facto de ao Estado vir a ser representado por advogado contratado, veio levantar questões económicas, em que se argumenta que ao recorrer a este profissional o erário público vai disparar, e para além disso, veio Maria José Morgado, directora do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa, dizer que “Os custos públicos vão disparar e só é pena que nunca se invista num Ministério Público de elite e bem preparado. Este sofrerá um declínio em nome de interesses dificilmente escrutináveis”.
Para além disso, o MP fala em inconstitucionalidade e usa como argumento a taxa de 83% de sucesso, em casos defendido pelos Procuradores, em que o estado foi absolvido.
Outra das alterações é relativa ao artg.8º/5 do CPTA, em que se prevê um alargamento dos poderes inquisitórios do MP, estabelecendo um dever de colaboração das entidades públicas e privadas com aquele.
Importa referir também a alteração ao artg.55º/1/b) do CPTA, quanto á impugnação de actos administrativos, em que foi acrescentado á alínea a seguinte matéria: “em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses púbicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no nº2 do artg.9º;”.
Conclusão:
A meu ver o MP continua a deter consideráveis poderes no âmbito do processo administrativo, principalmente no que diz respeito á acção popular, e á defesa da legalidade.
Todavia, a problemática levantada relativamente á questão do MP poder no mesmo processo defender partes diferentes, parece-me a mim questionável e uma clara violação do principio do processo equitativo.
Para além disso, considero igualmente que o MP tem em si poderes que extravasam a sua competência, nomeadamente a questão de poder emitir opinião sobre o mérito da causa, que na realidade, pode afectar a imparcialidade do órgão jurisdicional, principalmente em casos mediáticos.
Quanto ás alterações prosseguidas pelo PRCPTA, a questão do estado poder ser representado por advogados contratados, em detrimento do MP, parece-me que há um esvaziamento da norma constitucional – artg. 219º/2 da CRP – que confere ao MP o estatuto de Representante do Estado.
Já quanto á alteração ao artg.8º/5, não se identifica a ratio da norma, uma vez que esta norma alarga os poderes do MP face aos particulares.
Destarte, a meu ver o PRCPTA, vem reduzir e limitar os poderes do MP, retirando-lhe certos poderes directamente ligados á função de Representante do Estado e defensor da legalidade.

Bibliografia:
1.      Gomes Canotilho/ Vital Moreira – “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, 4º Edição, Coimbra Editora, 2007;
2.      Mário Aroso de Almeida, “Manual de Processo Administrativo”, 2010, Almedina;
3.      Sérvulo Correia, “A Reforma do Contencioso Administrativo”, VOL I, 2001, Coimbra Editora;
4.      Carolina Maranhão Sousa, “O Direito De Igualdade Entre As Partes No Contencioso Administrativo”, Tese de Mestrado, FDUL, 2008;
5.      Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, 9º Edição, Almedina, 2008
6.      Vasco Pereira da Silva, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise – Ensaio sobre as Acções no Novo Processo Administrativo”, 2009, Almedina;
           


[1] Doravante MP.
[2] Cfr, Gomes Canotilho, “CRP Anotada”
[3] Cfr, José Carlos Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, Almedina,……
[4] Tinha a responsabilidade de assegurar a correcta aplicação do direito e a prossecução de uma eficiente tramitação processual.
[5] Cfr, Carolina Maranhão Sousa, “O Direito De Igualdade Entre As Partes No Contencioso Administrativo”, Tese de Mestrado, FDUL, 2008.
[6] Cfr, Sérvulo Correia, “A Reforma do Contencioso Administrativo”, VOL I, 2001, Coimbra Editora.
[7] Doravante PRCPTA.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A condenação à prática de atos administrativos e o princípio da separação de poderes

O art 66 do CPTA, confere aos tribunais administrativos o poder de procederem à condenação da Administração à prática, “dentro de determinado prazo, de um ato administrativo que tenha sido ilegalmente omitido ou recusado”.

Este preceito veio dar cumprimento ao imperativo decorrente do artigo 268 nº4 da CRP, introduzido pela revisão constitucional de 1997. O art. 268º nº4 determina que é garantido aos administrados a tutela jurisdicional efetiva dos seus direito ou interesse legalmente protegido, nomeadamente quanto à “determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos”.
Para o Professor Vasco Pereira da Silva, esta possibilidade de determinação da prática de atos administrativos legalmente devidos  “é uma componente essencial do principio de tutela jurisdicional plena e efetiva dos direitos dos particulares em face da Administração, o qual constitui o novo centro do Contencioso Administrativo”[1]

No entanto, com o surgimento da possibilidade de condenação da Administração à prática de ato devido, suscitou-se o problema da delimitação da fronteira entre a esfera da competência administrativa e a esfera de competência jurisdicional, para que o princípio da separação de poderes não seja desrespeitado. O Tribunal não se pode intrometer no espaço próprio que corresponde ao exercício de poderes discricionários por parte da Administração.

O entendimento tradicional do princípio da separação de poderes preconizava que o juiz só poderia anular atos administrativos, mas nunca poderia dar ordens de qualquer espécie às autoridades administrativas, isto é, a sua intervenção limitar-se-ia a um sentido negativo, esgotando-se na eliminação da ordem jurídica de atos ilegalmente emitidos pela Administração. Qualquer intervenção positiva por parte dos tribunais, seria considerada uma intromissão no exercício da função administrativa.
Porém, na opinião de Mário Aroso de Almeida, “é possível atribuir o maior alcance possível a estes poderes [poderes de prenuncia do juiz] sem deixar de reconhecer-se que eles encontram o seu limite, […] no principio da separação e interdependência de poderes, que de modo equilibrado, é recebido no artigo 3º CPTA” não devendo por isso afigura-se esse limite como forma de “sustentar soluções que, na pratica, esvaziariam os poderes que, nos termos do art. 71º do CPTA, o juiz deve efetivamente exercer no âmbito da ação de condenação à pratica de ato administrativo”[2]

Não se trata aqui de eliminar os espaços de decisão próprios da Administração, que o CPTA faz questão de salvaguardar, como podemos verificar no art 71 nº2 que determina que, quando a emissão do ato pretendido envolva a formulação de “valorações próprias do exercício da função administrativa”, o tribunal não pode determinar o conteúdo do ato a praticar, mas apenas definir os parâmetros dentro dos quais os poder discricionário deverá ser (re)exercido.
O próprio poder discricionário não deve ser entendido “ como um modo de realização do direito no caso concreto mediante escolhas que, sendo da responsabilidade da Administração, não são livres, pelo que é sempre possível o controlo jurisdicional dos respetivos parâmetros.” [3]

Posto isto, é verdade que a possibilidade de se proceder à condenação da Administração à prática de ato devido, veio abrir uma brecha a que possa ocorrer situações de ingerência, por parte dos tribunais, na esfera de competência da Administração, até por dificuldade em definir no caso concreto, se estamos perante uma situação de “valorações próprias do exercício da função administrativa” ou não.

Podemos verificar essa situação de imprecisão no Acórdão do TCA Sul de 21 Fevereiro de 2013[4], onde os juízes se dividiram quanto ao alcance dos poderes condenatórios do tribunal. Parece-me pertinente referir a argumentação do Dr Paulo Pereira Gouveia (que fez voto vencido) para fundamentar a sua decisão: “ o tribunal não pode determinar o conteúdo da conduta a adotar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela Administração. Ou seja, o tribunal não se pode intrometer no espaço próprio de valoração que corresponde ao exercício de poderes discricionários por parte da Administração. Quando, em determinada matéria, o quadro normativo aplicável reserva para a Administração o poder de introduzir a definição jurídica primária através da prática de um ato administrativo, a Administração beneficia de uma reserva de princípio quanto ao poder de definir o Direito nessa matéria. Só deste modo se assegura o respeito pelo princípio da separação e interdependência de poderes.” A discricionariedade, “envolve juízos de mérito/conteúdo, de oportunidade ou de conveniência, em vez de juízos estritamente jurídicos”.

Ainda que possa surgir estas dificuldades de qualificação, a admissibilidade de sentenças de condenação da Administração é, nas palavras do Professor Vasco Pereira da Silva, “a forma mais adequada, num Contencioso Administrativo de plena jurisdição, [de se] reagir contra comportamentos administrativos que, por ação ou omissão, lesam direito dos particulares decorrentes da negação de atos legalmente devidos”




[1] VASCO PEREIRA da SILVA – O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, pág. 381
[2] MÁRIO AROSO de ALMEIDA – Manual de Processo Administrativo, pág. 95
[3] VASCO PEREIRA da SILVA – O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, pág. 378
[4] Acórdão do TCA Sul, 21/02/2013, proc. 06303/10

domingo, 7 de dezembro de 2014

Querem ver que a formiga já tem catarro? : o reforço do contencioso pré-contratrual



1.     Meios Contenciosos

No contencioso administrativo existem dois tipos de acções: em primeiro lugar, as referentes a processos principais e em segundo lugar, as que dizem respeito a processos acessórios/cautelares. As referentes a processos principais decidem o fundo da questão ao mesmo tempo que estabelecem a relação jurídica definitiva para o caso, as que dizem respeito a processos acessórios estabelecem a relação jurídica provisória até que o processo principal seja decidido, trata-se assim de um processo instrumental.
O contencioso administrativo tem como mote “Periculum in mora” – evitar perda direitos uma vez que existe perigo na demora do processo.
Os processos principais tanto podem ser urgentes, exigem celeridade, como não urgentes/ normais. Estes tanto podem sob a forma de uma acção administrativa comum como por outro lado, sob a forma de uma acção administrativa especial - uma dicotomia de meios processuais.
Na acção administrativa especial temos três modalidades: em primeiro lugar, a impugnação do acto administrativo, nos artigos 50º e ss do Código de Processo nos Tribunais Administrativos - CPTA. Em segundo, a condenação à prática de acto administrativo legalmente devido, nos artigos 66º e ss do CPTA. Por fim, em terceiro e último lugar a impugnação de normas, nos artigos  72º e ss do CPTA.
A acção administrativa comum é delimitada pela negativa, ou seja, o seu âmbito é definido em termos residuais, logo, tudo o que não competir à acção administrativa especial é do âmbito da acção administrativa comum. Esta encontra-se regulado nos artigo 37º e ss do CPTA.
O professor Vasco Pereira da Silva[i] afirma a “troca de nomes” entre as acções principais não urgentes na medida em que existe maior número de processos na Acção Administrativa Especial, questiona a sua especialidade se no final de contas é a forma de acção mais comum. Em seguida caso existam dois pedidos de diferentes tipos de acções e haja cumulação de pedidos , pelo artigo 4º em conjugação com o artigo 5º/1, ambos do CPTA, um acção administrativa especial e outra acção administrativa comum, adopta-se a forma da acção administrativa especial.
Além dos processos não urgentes já referidos outro meio processual a referir é o dos processos urgentes. Aqui o que <> mas antes << a urgência que nos ocupa é a de uma rápida decisão de fundo>>[ii].
 O Código de Processo nos Tribunais Administrativos prevê quatro: duas impugnações urgentes e outras duas intimações urgentes.
No que toca às impugnações urgentes temos as Impugnações urgentes em matéria eleitoral, artigos 97º e ss, e as impugnações urgentes em matéria de contencioso pré-contratual, artigos 100º e ss. Por outro lado, no que diz respeito às intimações urgentes temos a Intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões, artigos 104º e ss em conjugação com o artigo 268º CRP e o artigo 61º do CP, e as intimações para protecção de direitos liberdades e garantias, artigos 109º e ss. Daremos destaque à impugnação urgente em matéria de contencioso pré-contratual.

2.     Contencioso pré-contratual
O contencioso enquanto meio processual decorre das directivas da UE mais concretamente do regime especial instituído pelo Decreto-Lei nº 134/98 de 15 de Maio, a chamada “Directiva-Recursos” (Directiva nº89/665/CEE). A autonomização deste processo na secção II do capítulo I do Título IV do CPTA “resulta da necessidade de assegurar simultaneamente duas ordens de interesses, públicos e privados: por um lado, promover neste domínio a transparência e a concorrência, através de uma protecção adequada e em tempo útil aos interesses dos candidatos à celebração de contratos com as entidades públicas” ao mesmo tempo que se visa “garantir o inicio rápido da execução dos contratos administrativos e a respectiva estabilidade depois de celebrados”[iii].

3.     Alterações ao Contencioso pré-contratual com a reforma do contencioso administrativo

a.     Âmbito
O contencioso pré-contratual enquanto processo urgente vem regulado nos artigos 100º e ss do CPTA. Enquanto meio processual não diz respeito a todo o acto pré-contratual, este tem que respeitar o objecto previsto no artigo 100º/1 CPTA. O contencioso pré-contratual está assim destinado à impugnação de actos administrativos relativos à formação de contratos de empreitada, concessão de obras públicas, prestação de  serviços e fornecimento de bens – nº1 do artigo 100 º CPTA. Como afirma o Professor Vieira de Andrade e a grande maioria da doutrina esta disposição tem que ser enquadrada no âmbito do disposto do Código dos Contratos Públicos que se refere a “aquisição de serviços” e “aquisição de bens móveis”[iv].
Com a reforma do contencioso administrativo o objecto o contencioso pré-contratual vai ser alargado a modalidades, (além das já referidas anteriormente contratos de empreitada, concessão de obras públicas) como a concessão de serviços públicos, aquisição ou locação de bens móveis e aquisição de serviços, esta última parte já adaptada à terminologia presente no CCP como referimos anteriormente.
No seu nº2 o artigo 100º CPTA com a reforma, faculta a definição de actos administrativos sujeitos ao regime do contencioso pré-contratual.
Por fim no seu nº3  admite-se a cumulação de pedidos como previsto nos termos do artigo 4º do CPTA seguindo a tramitação do artigo 102º CPTA. Com a reforma este artigo vem esclarecer as dúvidas quanto à admissibilidade de cumulação de pedidos de anulação com pedidos de condenação, reconstituição e de anulação de contratos. Todas estas formas de cumulação passam a ser permitidas o que antes da reforma, CPTA actual, não era “susceptível de resposta normativa expressa por vida da remissão feita pelo artigo 100º/1, na medida em que a remissão não abrande o artigo 47º CPTA”[v].

b.     Prazo
Com o actual CPTA o prazo para intentar os processos do contencioso pré- contratual é de um mês a contar da notificação dos interessados ou não havendo esta, do conhecimento do acto, artigo 101º do CPTA. Este artigo é sujeito a muitas críticas na medida em que o prazo além de ser muito curto é rígido, ou seja, aplica-se o prazo de um mês para intentar acções que digam respeito ao contencioso pré-contratual tanto a particulares como ao Ministério Público. Apesar das críticas, esta tem sido a posição da Jurisprudência portuguesa.
Outro problema que se suscita é o de que segundo esta concepção, interpretação
“literal”, mesmo os actos nulos têm só um mês, ora isto não tem qualquer razão de ser uma vez que os actos nulos logo à partida não produzem efeitos, daí não ser racional uma limitação tão curta para a impugnação. Esta norma chega mesmo a ser contraditória com o raciocínio adoptado neste código, veja-se o artigo 58º/1 do CPTA que dispõe, no que toca a actos nulos, pela não sujeição a prazo para impugnação. Esta incoerência é ainda mais grave quando pelo artigo 100º/1 do actual CPTA se remete para o disposto na secção I do capítulo II do Título III, ou seja, artigos 50º e ss, abrangendo assim o artigo 58º/1 CPTA, o qual está sistematicamente inserido na Subsecção III , estando esta no âmbito da Secção I. Na nossa opinião se a remissão –argumento sistemático - existe, mesmo que subsidiária não deixa de ser válida,  logo a lógica devia ser a mesma, tutelado assim as expectativas e protegendo os interesses dos visados.
Por fim, outra questão suscitada pelo actual código no que toca ao prazo é a possibilidade de aplicação ou não do artigo 58º/4 do CPTA no contencioso pré-contratual. A generalidade da doutrina defende a não aplicação deste artigo, no entanto o Professor Mário Aroso de Almeida[vi] defende que nos casos de justo impedimento, actual 58º/4 al. c) e futuro 58º/4 al. a) do CPTA, deve ser permitido, logo não tendo expirado o prazo de um ano, é admissível a impugnação perante a demonstração que a tempestividade não seria exigível a um cidadão diligente por verificação de uma situação de justo impedimento. A posição do Sr. Professor será não só consagrada na reforma como a concepção da reforma é mais abrangente considerando o artigo 101º CPTA aplicável à contagem dos prazos o disposto nos artigos 58º/3 e 4 e 59º e 60º do CPTA, não se considerando apenas a situação de justo impedimento mas também casos de indução do interessado em erro e de atraso desculpável. No que toca ao artigo 59º vem ser esclarecido e permitido o tema da suspensão de impugnação contencioso quando é utilizado meio de impugnação no seu nº4 não prejudicando o disposto no nº5 do interessado proceder à impugnação do acto na pendência da impugnação administrativa ou de requer providência cautelar.

c.     Artigo 103º CPTA
Importa referir antes de mais, que este artigo com a reforma do contencioso administrativo vai deixar de existir enquanto audiência pública como hoje se encontra prevista no artigo 103º do, actual, CPTA. Este facto encontrará justificação nas palavras do Professor Vieira de Andrade por não “ter assumido qualquer relevo prático”[vii] desde que entrou em vigor. A sua falta de relevo justifica-se com o princípio da celeridade presente nos processos urgentes, o qual seria contradita pela realização de uma de uma audiência pública facultativa uma vez que o próprio artigo permite a realização da audiência pública quando o tribunal “considere aconselhável”. No entanto, a questão da audiência pública não desaparece totalmente, encontrando-se a matéria regulada no novo artigo 102º/5 do CPTA , artigo relativo à tramitação no contencioso pré-contratual.
Este artigo deixa de se referir à audiência pública e ganha nova face. É uma “inovação” da reforma do contencioso administrativo e abrange a impugnação dos documentos conformadores do procedimento. “Inovação” na medida em que o artigo antes não existia sob esta redacção, mas ao mesmo tempo não se trata de inovação, mas antes de uma autonomização e valorização do actual artigo 100º/2 do CPTA que também admitia a impugnação directo dos documentos conformadores do procedimento. O nº 2 do novo artigo 103º CPTA vem reconhecer legitimidade para deduzir pedido de declaração de ilegalidade “por quem participe ou tenha interesse em participar no procedimento em causa” ao mesmo tempo que permite a cumulação  com o pedido de impugnação de acto administrativo. Havendo cumulação de pedidos basta que um deles siga a forma de processo urgente para que seja esta a adoptada, artigo 5º/1 CPTA.
O nº3 do artigo 103ºCPTA admite ainda a dedução do pedido de declaração da ilegalidade na pendência do procedimento desde que exista relação/conexão com os documentos que estão em causa. No seu nº 4 o código vem esclarecer que a formulação de pedido de declaração de ilegalidade dos documentos conformadores do procedimento  não prejudica a possibilidade de impugnação dos regulamentos que conformem mais do que um procedimento de formação de contratos.

4.     Conclusão

Em jeito de conclusão é correcto afirmar que com a reforma do contencioso administrativo o processo urgente pré-contratual vai finalmente adquirir as formas que lhe foram destinadas e previstas através da “Directiva-Recursos”, regime especial de origem comunitária. São duas as maiores alterações no contencioso pré-contratual: em primeiro lugar a consagração do efeito suspensivo automático de impugnação de actos de adjudicação e a segunda permitir a cumulação num sentido mais lato em todo o processo pré-contratual. Estas medidas além de se assegurar a celeridade, na perspectiva em que vários pedidos terão resolução numa mesma acção, e justiça “viabiliza um mercado de contratação pública são e transparente em que a concorrência funcione de forme efectiva e as empresas tenham reais condições de igualdade de se tornarem co-contratantes da Administração, distinguindo-se apenas pelo seu mérito”[viii].




[i] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ª edição, Almedina, pág. 241 e ss.
[ii] Margarida Olazabal Cabral, Cadernos de Justiça Administrativa, n. 94 Julho/agosto 2012, pág. 38.
[iii] José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça administrativa (Lições), 11ª edição, 2011, Almedina, pág. 227.
[iv] José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça administrativa (Lições), 11ª edição, 2011, Almedina, pág. 226 - nota de rodapé 586.
[v] José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça administrativa (Lições), 11ª edição, 2011, Almedina, pág. 229 e ss.
[vi] Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010, pág. 353 e ss.
[vii] José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça administrativa (Lições), 11ª edição, 2011, Almedina, pág. 233.
[viii] Margarida Olazabal Cabral, Cadernos de Justiça Administrativa, n. 94 Julho/agosto 2012, pág. 41.